Eduardo Borem

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CartaTeca: Móveis Coloniais de Acaju: o triunfo da independência

No segundo vídeo da série CartaTeca, a banda brasiliense despede-se de um público apaixonado, maior patrimônio em 18 anos de carreira.

A banda Móveis Coloniais de Acaju foi formada em 1998, quando o trompete, o trombone e o sax viviam um relacionamento fértil com os três acordes em Brasília. A cena de skacore da capital federal surgia do encontro natural entre o punk de Raimundos e Little Quail and the Mad Birds e o estilo precursor do rocksteady e do reggae na Jamaica.

 A fusão entre rock e música jamaicana não era incomum na cidade: o Maskavo Roots, dono do hit “Tempestade”, fizera sucesso com a combinação. A novidade era a presença dos tradicionais naipes de metais de ska nas formações, geralmente completadas por um power trio: guitarra distorcida, baixo palhetado, bateria pesada.

Ao contrário do reggae dos conterrâneos do Natiruts, onipresente nas rádios brasileiras à época, bandas como E a Vaca Foi Pro Brejo e Bois de Gerião não estavam tão interessadas em “liberdade para dentro da cabeça”: trompete, sax e trombone estavam a serviço das rodas de pogo, de públicos que dançavam, entre socos e chutes no ar, ao som de um ska enfurecido. 

“Nossa banda só aconteceu por causa da cena”, lembra André Gonzales, vocalista do Móveis Colonais de Acaju. Originalmente conhecida pelo público brasiliense pela sigla MCA, a megaformação despontou em 1998 com um mistura de rock e ska revestida de ritmos variados, da música brasileira à do leste europeu. Com um afiado naipe de metais, uma combinação de sax barítono, sax tenor e flauta transversal, a banda logo se destacou nos palcos do País. 

Após 18 anos de carreira, o fruto mais duradouro da cena de ska brasiliense anuncia uma pausa por tempo indeterminado a um público que aprendeu a cultivar como poucos.  

Na despedida do Móveis aos paulistanos, em 19 de novembro no Teatro Mars, a química entre fãs e banda resultou em mais um êxtase coletivo, algo frequente nas apresentações do grupo. No segundo vídeo da série de entrevistas CartaTeca (O primeiro foi dedicado a Cadão Volpato, da banda Fellini), as imagens do show não deixam dúvidas sobre a paixão dos “cupins” pelo Móveis.

Com seus concertos interativos, de arranjos precisos e mudanças de tempo e dinâmica inusitadas, a banda brasiliense é a mais bem-sucedida de uma geração cujo talento não foi facilmente recompensado por gravadoras como ocorreu com os antecessores Legião Urbana, Capital Inicial ou Raimundos. “Tínhamos que achar nosso caminho, ninguém ia apostar na gente”, afirma o tecladista Eduardo Borém.

Quando a banda, hoje com nove integrantes, fazia shows memoráveis na Tenda Comunitária da Universidade de Brasília, no início dos anos 2000, a cadeia produtiva da música brasileira vivia uma crise que frustrava muitas das expectativas criadas por gerações anteriores. O caminho do Móveis confunde-se com a ascensão da cena independente no novo século e o reposicionamento das bandas.

"Tínhamos que achar nosso caminho, ninguém ia apostar na gente", diz o tecladista Borém

Não bastava tocar em um ou outro show de maior porte e esperar pelo aceno de um agente de uma gravadora. Tratava-se de formar público pela relação direta, sem intermediários. “O Móveis surgiu com a internet, no fim da era das gravadoras. Era preciso nadar de braçada e tentar sobreviver nessa selva” resume Paulo Rogério, sax tenor da banda.

A facilidade do Móveis em transitar por diversos estilos e tendências sem deixar de ser autoral, uma ética que se confundia com a dos festivais de música surgidos na década passada, logo transformou o grupo em um dos mais queridos do independente brasileiro.

A banda conquistou degrau por degrau sua reputação. Em Brasília, já era um das principais destaques locais antes de lançar o disco Idem, de 2005. Distribuído pela Radiola Records, de Bruno Lancellotti, e produzido por Rafael Ramos, o primeiro álbum do grupo teve uma tiragem de três mil cópias.

O CD vendeu duas mil nos primeiros dez dias, um ótimo número para os padrões das bandas independentes da época, enfraquecidas com a transição dos discos físicos para o download e streaming de música e com a perda de espaço de divulgação na rádio e na televisão. Para medir o sucesso de faixas como Perca Peso, Seria o Rolex e Copacabana, era preciso ir a um show do Móveis.

As bandas independentes que pretendiam sobreviver com sua música precisavam arrecadar com shows. Para o Móveis, era meio caminho andado: ponto forte da arte do grupo, as apresentações pelo País permitiram a consolidação de um público fiel, garantia de um negócio musical sustentável.

“Quando você não se encaixa no lugar comum, precisa criar um mercado próprio. Se não pertence ao mercado do sertanejo ou do rock, precisa encontrar a intersecção disso, onde está o público. E, no fim, a gente ficou com o público” diz André.

A banda não apenas foi um destaque da cena de festivais da década passada, mas ajudou a fomentá-la: promoveu eventos como o Móveis Convida e construiu diversas parcerias com artistas e produtores do universo independente.

Cada integrante da banda assumiu uma função de produção do grupo, que se consolidou como exemplo de autogestão entre as bandas brasileiras. O modelo foi seguido por muitos artistas, hoje menos desamparados na relação com o mercado, avalia Paulo Rogério. “Atualmente há uma síntese entre o período que a gravadora fazia de tudo e o artista, nada, com aquele vivido pelo Móveis, quando o artista metia a mão na massa e fazia de tudo. Existe um equilíbrio maior.”

"Quando você não se encaixa no lugar comum, precisa criar um mercado próprio", diz o vocalista André Gonzales.

Com sua própria estrutura de produção, o Moveis lotou shows em todo o País, lançou três álbuns de estúdio, integrou listas de melhores do ano e emplacou uma canção em uma novela da TV Globo. O esforço de quase duas décadas é recompensado pelo carinho do público na despedida.

“A vivência, o entendimento, a experiência, a compreensão é sempre deles [fãs]. Eles não vão perder a gente, mas vamos perder mais a presença deles que o contrário”, comenta André. E se eles organizarem um crowdfunding para trazer a banda de volta aos palcos? “Aí é com o público”, emenda Borém. Maior patrimônio do Móveis, o desejo dos cupins continua sendo uma ordem